Quatro Futuros da Realidade
José Ramos, Universidade de Sunshine Coast, Australia; Journal of Futures Studies, Taiwan. jose@actionforesight.net
Tradução: Alessandro Souza e Jaqueline Weigel, W Futurismo, Brasil
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Resumo
Este artigo examina os futuros da esfera pública e realidade compartilhada como recursos comuns (Commons), examinando as forças que levaram a uma crise epistemológica. Usando uma perspectiva de recursos comuns, a teoria Ator-Rede e a Análise em Camadas Causais (CLA), as dimensões da crise epistemológica são exploradas e reformuladas, fornecendo quatro cenários com metáforas: o poço de gladiadores, o campo de reeducação, o internato e o jardim de permacultura. O artigo conclui com uma chamada à ação para integrar ciências e conhecimentos universalistas e pluralistas.
Palavras-Chave: Epistemologia, Pluralismo, Universalismo, Ideação, Relatividade, Ciência, Dogma, Análise em Camadas Causais, Teoria Ator-Rede (TAR), Esfera Pública, Recursos Comuns, Internet
Introdução
Hoje estamos vendo uma mudança tectônica em como nossas noções de verdade e realidade são mediadas. Liderados pelos novos titãs digitais do Vale do Silício, Google, Facebook, Twitter e outros mediadores do pensamento, fomos levados a um novo regime de criação de realidade, amigável ao consumidor. Paralelamente a isto, estão as profundezas insondáveis da Internet – de novas empresas de mídia dignas de confiança como a Vice News, a blogs e sites que geram conspiração como InfoWars, “Russian Troll Farms”, “Great Firefall” da China, mundo do crypo-world e, claro, os fóruns 4chan e 8chan, onde novas identidades, apegos e ódios, surgem do inconsciente coletivo. A Internet é o Cavalo de Tróia dos dias modernos para um exército de novos agentes, que desencadearam uma crise epistemológica: notícias falsas (Fake News), teorias da conspiração, manipulação eleitoral, vigilância e polarização crescente entre diferentes comunidades de pensamento.
Objetivos e Método
O objetivo deste artigo é entender nossa atual crise epistemológica, sua relação com a Internet, e abordar como um senso compartilhado da realidade e a esfera pública como recurso comum, podem ser protegidos e gerados. O artigo é um exercício de criação de sentido. As questões relacionadas à fratura epistemológica são complexas. Este artigo pretende fornecer cenários úteis que apontam para caminhos de mudança.
Teoricamente este artigo se baseia na idéia de recursos comuns (Commons) desenvolvida por Ostrom (1990), Bollier e Helfrich (2012, 2015) e Bauwens e Niaros (2017) como base normativa. Também se baseia na ideia de esfera pública de Jurgen Habermas (1999). A “Teoria Ator-Rede – TAR” de Latour (2005) também informa as perspectivas – como as idéias, ideologias, máquinas (como por exemplo, “bots” da Internet), governos e pessoas nos vários exemplos que vemos nessa crise epistemológica da Internet, são uma combinação de “assembleias” emergentes e complexas . Metodologicamente, o artigo usa a Análise em Camadas Causais (CLA – “Casual Layered Analysis) de Inayatullah (1998) para analisar o assunto e fornecer reenquadramento, a partir do qual vários cenários são desenvolvidos para mostrar possíveis futuros que têm implicações em como respondemos coletivamente.
Análise CLA e Roteiro
A seguir, começa uma análise com base no método CLA. A análise começa com um olhar para a Ladainha – estes são os sintomas da questão. O artigo passa a examinar então, causas e problemas sistêmicos. Aqui, a idéia de “realidade compartilhada como recurso comum” e a esfera pública são introduzidas. Também são exploradas a economia política do capitalismo, a oligarquia, a pós-normalidade, a dinâmica das redes e a necessidade humana de agrupamentos e pertencimento de identidade.
Embora muitos trabalhos do CLA avancem de Ladainha à Causas Sistêmicas -> Visões de Mundo -> Metáforas, este artigo faz um pequeno desvio após Causas Sistêmicas, para explorar a dinâmica histórica do problema. Isso é importante porque nossa crise epistemológica precisa ser entendida em termos da lógica extrativa do desenvolvimento civilizacional. Enfrentar a crise e abrir um espaço para transformação, requer um entendimento de como a própria civilização desempenha um papel de criação da realidade.
A análise CLA é retomada então, observando o nível da epistemologia, em particular através dos temas Relatividade e Ideação. A relatividade diz respeito ao espectro, desde uma crença em uma verdade unitária (Universalismo) até uma crença em muitas verdades (Pluriversalismo). A ideação, por outro lado, refere-se à forma como as idéias são produzidas, o espectro da ciência/experiência a apenas opiniões, crenças ou tradições canônicas (ex. textos antigos).
Estes temas geram quatro futuros de criação da realidade com metáforas correspondentes, que são exploradas através de quatro vinhetas de cenários.
Ladainha/Sintomas
Embora a tendência humana para o tribalismo tenha existido desde o início, a Internet cria o potencial para novos níveis de “auto-referencialidade”, a capacidade de encontrar pessoas e websites que apóiem suas idéias, pontos de vista e preconceitos existentes, ao invés de desconfirmar ou desafiar-los. A isso, pode-se acrescentar o fenômeno da “bolha filtro” (situação onde uma pessoa só ouve e vê, notícias e informações que suportam o que ele/ela já acredita e gosta, especialmente criada na Internet como resultado de algoritmos de busca). Impulsionado pela lógica das plataformas de mídia, os algoritmos usados por empresas como Google e Facebook, garantem que vemos principalmente aquilo que procuramos (produtos de consumo), concordamos (preferências políticas), ou que simplesmente nos levam a mais notícias e fontes que confirmam e fortalecem idéias existentes. Dia após dia somos levados a câmaras de eco de acordo, inconscientemente separadas daquelas com as quais discordamos. Embora não exista nada de errado nisso, como sempre buscamos a comunidade de pessoas que compartilham de nossos pontos de vista, a Internet moderna suporta mundos auto-referenciais cada vez maiores, geralmente desconectados da experiência empírica e gerando incomensurabilidade entre diferentes pontos de vista. Mas até onde isso vai chegar? As pessoas vão começar a habitar visões incomensuráveis do que é real e do que não é? Perderemos algum padrão de como o que é real é entendido?
Hoje essa parece ser a tendência. O presidente dos EUA, Donald Trump, foi impugnado com base no que parece ser uma evidência clara. No entanto, a totalidade do partido republicano dos EUA decidiu ofuscar, desviar e fornecer fatos “alternativos”, em vez de concordar com os depoimentos de testemunhas. A política partidária sempre carregou algum grau de incomensurabilidade ideológica, por exemplo, a divisão durante a Guerra Fria. Hoje porém, a dinâmica da auto-referência e a vontade das pessoas de se instalarem em comunidades de pensamento, atingiram novos níveis.
Em 2018, os organizadores realizaram sua segunda Conferência Internacional da Terra Plana.1 Centenas se reuniram nos Estados Unidos e até internacionalmente, ignorando convenientemente a curvatura da Terra pelas janelas de seus aviões, para compartilhar seus pensamentos e teorias sobre como a noção de uma Terra redonda é uma conspiração. Hoje, encontramos aleatoriamente “flat-earthers” – pessoas que acreditam que a Terra é plana, e que montam argumentos apaixonados com base em idéias da rede mundial de computadores. Mas esse tipo de auto-referencialidade está longe de ser inócuo. Em 2019, um assassino em massa atingiu uma mesquita em Christchurch. O assassino de Christchurch foi radicalizado e passou a acreditar que estava lutando pelo futuro de uma raça “branca”. Foi dito a ele que havia uma conspiração para substituir sua cultura. Seguindo sites na Internet que mencionaram e citaram pessoas como Anders Breivik, nas câmaras de eco das comunidades 4chan e 8chan, a plasticidade de seu cérebro foi moldada em direção a uma trajetória de ódio e morte. O assassino acabou tirando 51 vidas em uma série de assassinatos transmitidos no Facebook durante os serviços das mesquitas, enquanto seus colegas anônimos covardemente postavam apoio e admiração a ele.2 Em seu manifesto, o assassino se gabou com orgulho de não ter tido educação formal, e de ter sido “educado na Internet”. Nesse caso, a Internet se tornou a universidade para o fim da civilização. É o lado sombrio do cérebro global previsto por HG Wells.
Uma vez que a aderência da mídia das empresas e do Estado ao espírito da modernidade foi finalmente rompida pela Internet, a verdadeira liberdade de pensamento e discussão floresceu, e a janela de Overton (também conhecida como janela do discurso) não foi apenas deslocada, mas destruída. Todas as possibilidades de expressão e crença estavam abertas para serem ensinadas, discutidas e faladas. Essa discussão aberta e frequentemente anônima permitiu que informações, fora do controle do estado e das empresas, fossem acessadas com frequência pela primeira vez. O resultado é óbvio. As pessoas estão encontrando o caminho de casa. Encontrando seu povo, encontrando suas tradições, vendo através das mentiras da história, uma lavagem cerebral das instituições e sua raiva. São energizadas e radicalizadas contra suas sociedades degeneradas.3
Juntamente com as “Bolhas Filtro” geradas pelas plataformas tecnológicas, está a lógica do conteúdo recomendado. O YouTube possui algoritmos específicos projetados para recomendar conteúdo ao usuário. É claro que é vantagem do YouTube e do Google se as pessoas continuarem assistindo o maior tempo possível. Dessa forma, as pessoas assistirão a mais anúncios. Para manter os usuários assistindo ao Youtube, o algoritmo recomenda tipos de conteúdo mais sensacionalistas ou extremos. Assim, foram contadas histórias de meninos muçulmanos radicalizados pelo meio do YouTube, que durante seu ápice foi um dos principais canais promocionais do ISIS (Estado Islâmico).4
Mecanismos de notícias falsas que lucram com o sensacionalismo surgiram no início de 2010 – um tipo de “capitalismo de clique-isca”. Então, havia uma espécie de inocência perversa. Como a história de uma mulher processando a Samsung por US$ 1,8 milhão depois que seu telefone ficou preso na sua vagina.5 Histórias ridículas e sensacionalistas criadas para obter o máximo de cliques e vender o máximo de anúncios, floresceram na nova economia da atenção. Mas as notícias falsas evoluíram para uma forma mais virulenta.
As notícias falsas se tornaram armas, uma ferramenta para manipulação política. Procure por “Cambridge Analytica”. Com a análise granular da personalidade de um usuário de mídia com base em sua pesquisa no Facebook, e em um histórico semelhante, as notícias falsas podiam ser direcionadas com precisão às pessoas mais suscetíveis a ela. As pessoas as espalharam como um vírus. Mas desta vez o vírus foi verdadeiramente virulento. Foi usado para destruir reputações políticas, dar gorjeta às eleições em países ao redor do mundo, o que foi crítico no Brexit, Trump e em inúmeras outras eleições.6 Esses “anúncios-sombra” foram feitos através de uma trilha difusa de dinheiro, um modo de influência preferido pelos oligárquicos, influências estrangeiras e outras influências monetárias que não desejam ser conhecidas.
Causas Sistêmicas
“Realidade compartilhada” é um recurso comum?
Um “Recurso comum” significa algo do qual dependemos mutuamente para nossa sobrevivência e bem-estar (Bauwens & Ramos, 2018). Estamos acostumados a pensar em recursos comuns como “coisas” – a saúde de nossos oceanos, acesso à água, um clima seguro. Como argumentado pelo economista vencedor do Prêmio Nobel, Elenor Ostrom (1990), por estarmos mutuamente envolvidos em muitos recursos comuns, nos envolvemos na governança deles. Se conseguirmos governá-los bem para que estes recursos comuns sejam mantidos e nutridos, como resultado, sobreviveremos e prosperaremos. Senão, não sobreviveremos ou nossas vidas serão degradadas. Recursos Comuns ou “Commons” portanto, também implica atividade, o ato de “comunidade”. Nos últimos 30 anos, foi aplicada a ideia de recursos comuns a muitas coisas – oceanos, cidades e até conhecimento na Internet (Bollier & Helfrich, 2012). Mas “realidade compartilhada” como recurso comum é uma ideia menos convencional.
O conceito de Recurso Comum também passa de implícito para explícito (Bauwens & Ramos, 2018). Os recursos comuns implícitos são aqueles mutuamente necessários para a sobrevivência e o bem-estar, mas são tomados como garantidos por alguns até serem ameaçados ou destruídos. A poluição do ar e o clima são dois exemplos de recursos comuns que passaram do implícito para o explícito. Somente quando entendemos o impacto do envenenamento por chumbo e de outros poluentes industriais transportados pelo ar como uma ameaça crítica à nossa saúde, que começamos a regular a poluição do ar. Só quando entendermos que a viabilidade futura da civilização está ligada a um clima seguro, que avançaremos em direção à governança planetária coletiva de nossa atmosfera. Estes passaram de recursos comuns implícitos para explícitos.
Nesse contexto, corremos o risco de perder um de nossos “recursos comuns” mais fundamentais – o senso compartilhado de realidade e verdade que nos permite resolver problemas juntos. Em nossa era contemporânea, a “realidade compartilhada como recurso comum” tem sido implícita – considerada como garantida e invisível. Mas quando “o que é real”, esse regime compartilhado da verdade, é ameaçado, as apostas também se tornam reais. Para lidar com as mudanças climáticas, exigimos mais do que um consenso científico global sobre o que é e como enfrentá-las; exigimos um consenso político, e iremos construir um entendimento compartilhado e amplo. Negação climática, fatos alternativos e informações incorretas são uma ameaça, tanto quanto o CO2 que entra na atmosfera – porque não podemos enfrentar efetivamente a mudança climática quando a maior economia do mundo é dirigida por um partido político que prefere negar a realidade dela. A saúde pública também é um recurso comum, e o movimento anti- vacina, que incentiva as pessoas a renunciarem às vacinas para seus filhos, é uma ameaça à saúde pública. Se o movimento anti-vacina fosse bem-sucedido, doenças erradicadas como poliomielite, sarampo, varíola e outros vírus arrebatariam novamente nossas sociedades.
A esfera pública
O filósofo alemão Jurgen Habermas discutiu o desafio de gerar uma conversa em toda a sociedade – o que ele chamou de “esfera pública” (Habermas, 1999). Para ele, a esfera pública se referia a uma conversa compartilhada que permitia à sociedade enfrentar seus desafios. Desde tempos imemoriais, houve visões de mundo concorrentes. Portanto, isso não implica necessariamente acordo sobre questões, mas os sistemas e processos necessários para que as pessoas dentro de uma sociedade gerem um significado compartilhado que lhes permita viver juntos e resolver os problemas que comumente compartilham. Parte da esfera pública inclui o conhecimento e o aprendizado necessários para ter conversas públicas inteligentes e tomar decisões sábias.
Podemos pensar em uma “realidade compartilhada” e esfera pública, de maneira um tanto intercambiável. Os alemães aprenderam da maneira mais difícil, através da experiência Nazista, o que acontece quando uma sociedade perde sua coerência e capacidade de ter debate, e quando a esfera pública é substituída pela propaganda de um partido em particular. Da mesma forma em outros países socialistas (União Soviética, República Popular da China), uma esfera pública aberta foi substituída por uma máquina autoritária de propaganda partidária, e vimos muitos dos problemas criados com o surgimento inicial do coronavírus (Covid-19) em Wuhan, onde as autoridades tentaram suprimir as informações, em vez de relatá-las de forma transparente. A esfera pública é um tipo de recurso comum, em que a capacidade de se envolver em conversas com os cidadãos de maneira mutuamente inteligível para abordar questões de preocupação comuns, é algo em que dependemos mutuamente para nossa sobrevivência e bem-estar. Sem isso, o pensamento e o aprendizado, e muito menos responder a problemas de rápido desenvolvimento, são perdidos e subsequentemente o bem-estar de uma sociedade é degradado. Analogamente à experiência alemã com o domínio nazista, em nossa era de notícias falsas e fatos alternativos, bolhas filtro e auto-referencialidade, a esfera pública mudou de um bem comum implícito que era dado como certo e mais difícil de ver, para um recurso comum explícito que identificamos agora que precisam ser cuidados e nutridos para nossa sobrevivência mútua.
Hoje vemos uma fratura epistemológica, uma ruptura da esfera pública. Vemos a aversão ao ódio étnico e a fratura de um senso comum da humanidade. Vemos a polarização social em todo o espectro político tipificada por um jogo mediado pela Internet entre visões de mundo e ideologias, ao invés do diálogo. Também vemos uma fuga da especialização, da ciência e do desenvolvimento e aceitação de teorias pseudo-científicas (muitas teorias da conspiração), especialmente em um momento em que o entendimento científico (ciência climática) é fundamental para a sobrevivência humana.
A Política econômica do Capitalismo
O capitalismo e sua busca pelo lucro criam externalidades sociais. No século 20, nos acostumamos a formas básicas de externalidades capitalistas: lixo tóxico jogado perto de uma comunidade sem proteções adequadas, rejeitos de minas destruindo cursos de água, investimentos especulativos tornando a habitação inacessível, ferimentos e mortes no trabalho e vários outros efeitos adversos causados pelo incentivo perverso do lucro dos acionistas a curto prazo. Usando sua Teoria de Sistemas Mundiais, William Robinson (2004) argumenta que durante o século XX o capitalismo passou de um modo extensivo para o modo intensivo. O capitalismo extensivo é um movimento de alcance geográfico, à medida que o capitalismo começou a ser introduzido e dominar periferias no sudeste da Ásia, América Latina, África, Ásia Central e com a conversão de países anteriormente socialistas (Rússia, China, Vietnã, etc.). O capitalismo intensivo, por outro lado, é o seu movimento no mundo da vida, no espaço da mente e nas relações das pessoas.
O capitalismo intensivo torna a capacidade de atenção das pessoas uma commodity, bem como a imaginação e seus relacionamentos, agora mediados por sistemas on-line. O Facebook torna o relacionamento humano em commodity, lucrando com o conteúdo gratuito e a troca gratuita que as pessoas fazem em sua plataforma, e vendendo esses dados relacionais a terceiros. Isso significa que, se as notícias falsas gerarem cliques e forem lucrativas, obteremos mais disso.7 Se os discursos conspiratórios paranoicos e supremacistas ganharem dinheiro, obteremos mais disso. Se conteúdos mais extremos no YouTube gerarem lucros, eles continuarão, assim como as visões extremistas que surgirão à partir deles. Se manter “bolhas filtro” significar que as pessoas permaneçam em uma plataforma, os algoritmos serão projetados para nos manter em comunidades auto-referenciais de visão de mundo – impulsionando a polarização. Isso tudo é para dizer que a consequência do capitalismo intensivo, e ato de tornar nossos mundos subjetivos da vida em commodities, representa toda uma nova ordem de externalidades sociais. Essas novas externalidades incluem a radicalização, a criação de idéias autorreferenciais extremas, o fraturamento da esfera pública, crianças viciadas em telas e jogos,8 e uma ladainha de outros problemas, impulsionados por incentivos perversos (lucro a curto prazo).
A mercantilização de dados pessoais pode ser vista como uma extensão desse movimento de capitalismo intensivo. Os dados pessoais on-line são o artefato da experiência de uma pessoa e estão em algum lugar entre o mundo físico dos elétrons e centros de processamento de dados e o mundo interior dos valores, aspirações, desejos, medos e etc. de uma pessoa. O objetivo dos dados-como-commodity, no entanto, é especificamente para influenciar a dimensão interna de uma pessoa, fazê-la assistir mais, comprar algo, pensar ou temer algo – faz parte do capitalismo intensivo.
A Era de Redes e a evolução ideacional acelerada
A Internet formou a base de uma mudança de escala, uma “compressão espaço-temporal”. As idéias não estavam mais confinadas ao papel impresso, e não mais limitadas pelo espaço, seja nação ou cidade. Qualquer idéia em qualquer lugar pode ser transmitida instantaneamente, e captada por qualquer outra pessoa com a tecnologia certa. A mudança de escala trazida pela Internet amplia a ascensão e queda de idéias. Permite que tribos “trans-locais” se formem no espaço e no tempo – uma nova lógica de associação entendida através de uma nova lente e etnografia sociológica (Arquilla & Ronfeldt, 1999; Castells, 1997; Karatani, 2014). As tribos de Prospectiva (Ramos, 2016) podem incluir aquelas que subscrevem uma imagem específica do futuro, seja a singularidade, trans-humanismo ou rebelião da extinção, mas também outros atratores mais perniciosos – como seguidores do ISIS ou supremacistas brancos.
A evolução ideacional acelerada não pode ser vista como toda ruim, pois permite que idéias que possam ter mérito sejam tornadas visíveis, vistas globalmente e escolhidas, e essas podem ser idéias que os humanos precisem para sobreviver no século XXI. Essa é a base do localismo cosmopolita (Cosmolocalism) – a capacidade de diversas localidades gerarem umas para as outras, idéias, inovações e soluções necessárias para o nosso bem-estar (Ramos, 2017). Mas essas também podem ser as idéias da Al-Qaeda, Anders Breivik e o assassino em massa de Christchurch. Assim, os riscos aumentam. Que idéias vencerão nesta placa de Petri de evolução acelerada que é a Terra do século XXI?
Assim, com as apostas levantadas, a economia política capitalista com sua motivação para obter lucros a curto prazo, agora trabalha contra as forças de nossa sobrevivência. Torna o ódio lucrativo,9 cria polarização social e amplifica teorias da conspiração, pseudo ciência e desinformação. Gera novas maneiras de acesso ao conhecimento, mudança de escala, e a abertura do espaço epistemológico. Pode significar comunidades globais e pacificadoras praticando meditação e caridade. A capacidade de novas idéias úteis e potentes se espalharem e se conectarem, permite uma aceleração da evolução social. Mas os benefícios desse processo evolutivo são prejudicados pela dinâmica do capitalismo, que submete essa evolução social à lógica do capital. Isso é capitalismo de vigilância (Zuboff, 2015). Em estados não autoritários, as instituições sociais lutam para regular a Internet, uma conseqüência do capitalismo e da natureza oligárquica da economia política.
Oligarquia
A oligarquia é um tipo de sistema ou arranjo político em que uma pequena minoria de pessoas, com grande riqueza material, usa sua riqueza para defendê-la através de várias estratégias. É uma triste verdade que hoje estamos vivendo uma nova era de oligarcas. Em uma década – de 2009 a 2019, o número de bilionários quadruplicou de 793 bilionários para 2.153.10 A taxa de imposto para um bilionário é efetivamente mais baixa do que a de um trabalhador médio nos EUA; onde o 1/10 mais rico em percentual possui tanta riqueza quanto os 80% inferiores.11 Martin Gilens e Benjamin Page (2016) conduziram um estudo para descobrir quais grupos exercem influência sobre as políticas públicas: cidadãos; elites econômicas; e grupos de interesse (baseados em massa ou orientados a negócios). Suas descobertas sugeriram que as elites econômicas e os interesses comerciais exercem uma influência substancial sobre as políticas, enquanto os cidadãos e grupos de interesse baseados em massa exerceram pouca ou nenhuma influência nos últimos 30 anos. Winters (2011) chegou à conclusão de que a maioria das nações do mundo hoje é uma forma de oligarquia. Até o 39º presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, descreveu os EUA como uma oligarquia.
Esse sistema de desigualdade se expande por meio de um processo que Winters (2011) chama de “defesa da riqueza”. A defesa da riqueza é o processo pelo qual os oligarcas defendem, mantêm e ampliam sua riqueza. Existem dois tipos principais de defesa da riqueza usados pelos super ricos: defesa da propriedade e defesa da renda. Defesa de propriedade é o processo de defesa de reivindicações de propriedade. Defesa de renda é o processo de evitar impostos e outras ameaças à renda de um oligarca. Quanto mais extrema a disparidade entre um oligarca e pessoas comuns em termos de riqueza, mais esforço e recursos são necessários para defender essa riqueza. À medida que a desigualdade aumenta, o poder dos oligarcas também aumenta, assim como sua necessidade de influenciar os resultados políticos, pois os bilionários têm muito mais em jogo e mais a perder em uma eleição democrática. Para defender sua riqueza, eles precisam ser capazes de influenciar as eleições e isso significa influenciar as mídias sociais. Com a Internet e as mídias sociais como uma nova maneira pela qual o pensamento e a “realidade” são mediados, e a vasta quantidade de dados que plataformas de mídia social como o Facebook captam do público, o forma para a defesa da riqueza inclui influenciar o comportamento de voto das pessoas, por meio de notícias falsas (Fake News) e anúncios-sombra direcionados. Pode ser difícil seguir as trilhas sombrias da influência do dinheiro, no entanto, um estudo recente concluiu que um quarto de todos os tweets sobre mudanças climáticas foram gerados por bots (automatizados), ampliando mensagens negativas. Nós podemos apenas especular quais influências oligárquicas fazem parte dessa rede de atores.12
O terror existencial do mundo pós-normal
Quando as pessoas começam a aprender sobre os futuros globais, podem experimentar uma variedade de coisas. Na maioria das vezes, começará com sobrecarga cognitiva. As pessoas também sentirão diferentes emoções – excitação, alarme, desespero, medo e até terror. Em última análise, as pessoas devem reconciliar quem são, com um novo contexto. Isso pode significar transformação existencial, e um novo senso de si mesmo. Isso pode acontecer se as pessoas tiverem um senso de esperança e se puderem visualizar caminhos de mudança, e também puderem se envolver diretamente e sentir um senso de controle ou influência na criação das mudanças. No entanto, muitos não conseguem enxergar os caminhos para a esperança e, ao invés de transformação existencial, há entorpecimento psíquico, medo e paranóia extrema, assim como movimentos reacionários (de volta ao passado) (Hicks, 2002).
A era atual pode ser aterrorizante para diferentes tipos de pessoas, e por diferentes razões. O contexto pós-colonial pode ser perturbador para aqueles que se identificam fortemente como “brancos”. Eles podem ver a ascensão da China, Índia e África, bem como uma equalização de poder, como uma ameaça. A reação bizarra do Partido Republicano dos EUA à presidência de Obama é instrutiva. Foi a primeira vez que a eleição de um presidente dos EUA não dependia de uma maioria “branca” e foi claramente uma ameaça para muitos – não apenas politicamente, mas também simbolicamente. Para o trabalhador da classe média, a idéia de automação e inteligência artificial soa como um prenúncio de perda de empregos. Para quem estuda as implicações das mudanças climáticas, isso é profundamente perturbador. Muitos aspectos da vida contemporânea podem ser simplesmente muito difíceis de serem totalmente compreendidos, ou mesmo parcialmente aceitos. Os Tempos Pós-Normais (PNT – “Post Normal Times”) postulam uma nova era em que eventos estranhos e contra-intuitivos emergem da sopa de complexidade, caos e contradições (Sardar & Sweeney, 2016). Para o futurista, “Tempos Pós-Modernos” (PNT) é uma estrutura ou linguagem para dar sentido a um mundo em mudança e com surpresas inesperadas. Para uma pessoa comum, sem o benefício ou privilégio de uma estrutura futurista, pode parecer avassalador, chocante ou aterrorizante, como sugerido por Toffler (1984) há mais de três décadas.
Nesse contexto, o terror é portanto, talvez o corolário da auto-ilusão. Se hoje as pessoas estão sofrendo de terror existencial de muitos tipos – será que a fuga para desinformação, teorias da conspiração e etnocentrismo não é um esforço para lidar com o terror existencial do mundo pós-normal? Será que a crença em uma teoria da conspiração fornece alívio temporário aos perturbados psicologicamente, ou é uma consequência de ser repetidamente enganado pelas instituições estatais e pela mídia (Merlan, 2019)? É como uma pessoa que sofrendo de um trauma, pode lidar com seus desafios com álcool ou drogas. Os medicamentos ajudam a lidar com os sintomas do problema a curto prazo, enquanto pioram as coisas a longo prazo. Seria a fuga popular ao poder e às personalidades autoritárias (Trump, Modi, Bolsonaro, etc.), e à falsidade da mídia que eles representam, uma busca por uma sensação de segurança e previsibilidade que havia no passado, num mundo perturbador e incerto?
Pertencimento e Tribalismo
Novas pesquisas comportamentais também começaram a mostrar o por que de os seres humanos terem uma tendência ao tribalismo, ou preconceitos do tipo “dentro / fora” do grupo. Eberhardt (2019) mostra como o cérebro humano responderá de maneira diferente aos rostos das pessoas com quem somos aculturados, ao contrário de rostos de pessoas de um grupo étnico ao qual a pessoa não pertence. Em geral, as pessoas podem diferenciar os rostos de pessoas de seu grupo, com correspondente e alta atividade cerebral, enquanto que com pessoas fisicamente diferentes, os rostos são menos diferenciados e com atividade cerebral mais baixa, sugerindo a sobreposição de padrões de categoria para grupos externos. Além disso, ela mostra como padrões de categorias semelhantes são desenvolvidos em crianças por micro-comportamentos dos pais (como os pais respondem e geram um padrão de categoria fora do grupo, mesmo quando sutil).
No contexto de todas as questões mencionadas, o caráter auto-referencial e direcionado a dados da Internet atual, amplia, multiplica de fato, as possibilidades de gerar tribalismo, pensamento “dentro / fora” do grupo e a produção de um inimigo – o “outro”. Embora essa não seja a trajetória determinada da Internet, como Rifkin (2009) argumentou que a Internet também cria uma “civilização empática”, essa nova onda de neo-autoritários se tornou adepta em semear o medo, a fim de mobilizar uma comunidade imaginada (e exclusiva) e divisão de direção. Assim, um dos nossos maiores desafios é conceituar novamente toda a família humana como a “tribo” à qual nós pertencemos, bem como pertencer à família de todos os seres vivos.
Dimensões Históricas
As civilizações surgiram surgiram quanto desapareceram ao longo de muitos períodos da história, e há uma variedade de concepções para os processos e mecanismos subjacentes a isso (Galtung e Inayatullah, 1997). Whitaker (2010) revisou 3.000 anos de crises ecológicas na Europa, Japão e China, e como as sociedades / civilizações superam esses tipos de crise. Ele argumentou que as elites nas políticas competitivas de classe e estado, quase sempre alcançam sistematicamente sua base de recursos naturais e, com o tempo, criam “economias políticas degradantes”, não como uma exceção, mas como uma regra.
As classes mais intimamente ligadas à produção real se revoltam periodicamente, e criam movimentos sociais transformadores, que historicamente assumiram uma forma religiosa-espiritual.
Thompson (1985) também identificou a tendência de as civilizações destruirem e poluírem sua base de recursos nas civilizações babilônica, grega, romana, européia e agora, planetária, onde o crescimento central de uma civilização ocorre às custas de suas periferias, e onde o excesso acaba enfraquecendo a viabilidade da própria civilização central. Thompson apontou para uma estrutura de recursos comum como solução, um arranjo que ele denominou “enantiomórfico”, uma consciência da profunda interdependência de todas as pessoas e da vida. A análise detalhada de Homer-Dixon (2010) sobre o uso de energia na civilização romana, também chegou a uma visão convergente: a dinâmica do crescimento foi baseada no início de grandes “retornos de do investimento de energia” (a quantidade de energia necessária para explorar novas fontes de energia), mas diminuiu com o tempo, à medida que externalidades sociais e ecológicas aumentavam. O império romano era extrativo no sentido de combustível pré-fóssil, através da exploração de escravos, florestas e terras abertas à agricultura.
Crise epistemológica na mudança civilizacional
Fig. 1: (Diagrama 1) De uma episteme extrativa a um epistemologia de Recursos Comuns
O diagrama 1 tenta descrever o movimento de um modo extrativo de civilização para um modo generativo, baseado na lógica da mutualização dos bens e recursos comuns. A dinâmica extrativa de uma civilização acaba gerando, uma crise civilizacional, assim como várias dinâmicas relacionadas também emergem. À medida que uma civilização excede a capacidade de seus sistemas vivos (biofísico e social), um movimento mais popular e plural de atores e organizações, fornece soluções através da lógica da mutualização e da comunhão (Bauwens & Ramos, 2018). Uma das preocupações centrais deste artigo é como, durante esse processo, uma crise epistemológica se desenrola e pode ser resolvida.
À medida que as conseqüências do impacto de uma civilização se tornam mais claras, a imagem de futuro que ajudou a animar a civilização existente, pode começar a perder poder (Polak, 1961). Imagens do futuro podem se tornar distópicas, e narrativas contraditórias à civilização emergem e servem para desvendar as crenças e lógicas centrais que uniram as pessoas ao antigo sistema (Polak & Boulding, 1973). Uma minoria criativa de várias perspectivas também pode produzir novas visões que tentam oferecer soluções em meio a crises (Galtung, 1997). Algumas delas podem ser visões “fantasiosas”, e soluções que reiteram a lógica central do império, sem abordar suas contradições, e dando às pessoas um falso senso de esperança. Outras podem ser projeções baseadas nas crises existenciais do mundo pós-normal. Algumas visões e soluções, no entanto, são baseadas em uma leitura quadrada dos limites das contradições de sua civilização, e convidam a novos caminhos que estão fora da órbita epistemológica do império (Boulding, 1978).
Em que ciclo civilizacional estamos agora? Nos últimos 400 anos, a lógica de extração e exploração foi super carregada pelo desenvolvimento do capitalismo na Europa, levando o colonialismo Ocidental primeiro a uma fase de mercantilismo e depois a industrial. Galtung (1971) discutiu essa dinâmica como “núcleo – periferia”, em que as elites das nações centrais e poderosas cooperam e sincronizam seus interesses com as elites de nações / regiões periféricas, possibilitando um modelo de extração e acumulação de vários estados. Esse modo de exploração, por sua vez, só poderia ser mantido através de algum tipo de subversão de significado e enganos ideológicos. Na Europa e nos Estados Unidos, a idéia de supremacia racial se desenvolveu e foi promulgada, tanto por meios populares quanto por antropologia, o que ajudou a justificar, e de fato legitimar a exploração e o genocídio em grande escala ao longo de centenas de anos (Inayatullah, 1997). A noção protestante de escolha (dos industriais e ricos) era outra versão disso – justificando um desrespeito às necessidades dos pobres ou infelizes, aqueles com preguiça de ajudar a si mesmos (Weber, 2008). Marx identificou esse tipo de idéia como uma “super-estrutura” que ajudou a sustentar a exploração capitalista (McNaughton, 2005). Da mesma forma, Gramsci usou o termo “hegemonia” para descrever os discursos reinantes que justificam a exploração e obscurecem a possibilidade de um sistema alternativo (socialista) (Hansen, 1997).
Uma das contradições que emergiram do esclarecimento, foi que as sociedades liberais ocidentais assumiram uma posição pluralista em relação à religião. A “liberdade de crença” é um dos fundamentos do liberalismo ocidental moderno. Ao mesmo tempo, essas sociedades liberalistas passaram a ser dirigidas por uma epistemologia científica universalista. Poderia haver muitas versões de Deus ou do divino, mas só poderia haver uma versão de gravidade. Este particionamento, em alguns lugares oficiais (EUA / França) e em outros lugares não oficiais (Reino Unido), foi indiscutivelmente vencido. A reforma na Europa foi um dos períodos mais sangrentos de sua história, discutindo se versões diferentes de Deus e igreja eram aceitáveis (protestantes) ou se poderia haver apenas um Deus padrão (católicos). Com o tempo, a afiliação a uma religião deu lugar à lealdade a um estado, à medida que a nação moderna se desenvolvia e um sentimento de nacionalidade usurpava a religião como principal. Estados europeus modernos se tornariam liberalistas e pluralistas em relação à religião, mas exigiriam um novo tipo de lealdade dos cidadãos. Como Braudel (1993) argumentaria, o acoplamento entre ciência, tecnologia e indústria se tornaria uma fórmula crítica de sucesso para os estados europeus competirem entre si no comércio, no império e na guerra. Estado, cidadania e ciência estavam unidos. Lealdade a um estado por implicação significava lealdade a uma epistemologia científico-industrial – um novo tipo de hegemonia.
Uma ecologia de conhecimentos?
Hoje, podemos ver uma economia política capitalista com suas externalidades de custo (especialmente as externalidades sociais criadas pela Internet) como fundamentalmente cúmplices em uma quebra de significado mais ampla, inibindo um senso de entendimento compartilhado que nos permite resolver problemas juntos. Capitalismo intensivo (Robinson, 2004) é um movimento no espaço mental das populações – sistemas e plataformas ideais para “consentimento de fabricação”, a capacidade de gerenciar os limites da realidade para populações inteiras (Herman & Chomsky, 2010). A economia política capitalista global pode assumir várias formas. Na Rússia, é uma cabala de oligarcas; nos EUA, é a mercantilização de dados das pessoas; e na China, é um controle mais rígido do Estado, preservando o privilégio do partido e de seus principados. Cada um encontra sua própria maneira de gerar consentimento, moldar a realidade e proteger os interesses dos mais poderosos.
Contra isso, existem movimentos e visões para um mundo justo e sustentável, que incorpore a “justiça cognitiva global” (Santos, 2007) – as experiências e necessidades do terceiro mundo (em oposição aos poderosos ou privilegiados) – fundamentais na necessária reconstituição epistemológica do mundo. Mas enfrentamos uma tensão. Os dois precisam de ciência, especialmente nas formas mais contra-hegemônicas (ciência climática, biologia evolucionária, saúde e dieta), e precisamos ir além da hegemonia da ciência industrial das empresas estatais, cúmplice de numerosas patologias sociais contemporâneas (Beck, 1999). O que é necessário é uma base epistemológica que seja pluralista e científica, que represente uma infinidade de sistemas de conhecimento baseados no que é contextualmente relevante e eficaz, ao invés de abstrato e universal. Precisamos avançar para uma compreensão das interdependências do conhecimento, ao invés de seu facciosismo, em que as pessoas possam se ver como parte de ecosistemas de conhecimentos e de uma “democracia do conhecimento” (Rowell & Hong, 2017).
Essa subversão da consciência crítica e emancipatória pelos interesses da elite se apóia em dois fatores: primeiro, uma negação ou ofuscação da ciência / experiência prática, onde dogmas, crenças ou informações incorretas não testadas podem prevalecer contra o empiricamente evidente; e segundo, a monopolização do conhecimento “legítimo” em um sistema unitário – universalismo. Fora do conhecimento sancionado, nenhum outro é permitido ou legítimo. O primeiro fator, entre universalismo e pluralismo, é aqui chamado de dimensão da Relatividade. O segundo fator, entre ciência/experiência prática e crença/dogma, é aqui chamado de dimensão da Ideação. Estas dimensões também oferecem a oportunidade de reconstituição e transformação epistemológicas.
Dimensões Epistemológicas
Implícito na Análise em Camadas Causais – CLA (Inayatullah, 1998) como método, é a proposição de que a dimensão epistemológica de uma questão, a visão de mundo, discursos, e narrativas no trabalho desempenham um papel fundamental na produção de um problema. Isso é semelhante ao argumento de Donella Meadows (1999) de que o melhor lugar para se intervir em um sistema, era mudar o “paradigma” central. O CLA fornece um método para fazer isso. Para explorar mais profundamente essa crise epistemológica e criar espaço para a mudança, duas dimensões epistemológicas fundamentais são propostas e exploradas: Ideação e Relatividade.
Ideação diz respeito a como algo, ou alguma idéia, passa a ser considerado como verdade. Isso ocorre através de um processo empírico-verificatório, ou através de insights, experiências pessoais, boatos ou apenas da Internet? Em um extremo, está o assassino em massa de Christchurch, que se deliciava com o desprezo da educação formal, proclamando com orgulho “Eu fui educado pela Internet”. Este é o fim extremo da ideação pela repetição da Internet e pela câmara de eco. No outro extremo do espectro estão as ciências naturais e os processos científicos usados em vários domínios da ciência, bem como o conhecimento especializado fora da ciência, com base no domínio (por exemplo, meditação, esportes de elite, direito, etc.). Na ciência, para ser verdade, algo precisa passar por um rigoroso processo de testes (Popper, 2002). A teoria geral da relatividade de Einstein, apesar de ter mais de 100 anos, ainda está sendo testada, contestada e verificada. Para conhecimento especializado, uma pessoa deve demonstrar conhecimento e habilidade. Outra maneira de resumir essa dimensão é se a verdade deve ser encontrada através de uma experiência profunda, ou com alguém ou grupo com determinada opinião, crença ou “teoria” (não baseada em ciências ou experiências sociais ou naturais). No diagrama 1, essa dimensão é explorada. (Observe que os números significam a posição em um espectro e, portanto, pulam).
Tabela 1: Análise espectral de Ideação. Tabela do autor
1 – Ciência Natural | Processos verificativos rigorosos – método(s) científico(s) |
2 – Conhecimento especializado | O ônus da prova está no especialista para demonstrar eficácia/conhecimento (ex. profissão e ofícios jurídicos) |
2 – Revistas Acadêmicas | Produção de conhecimento institucional – processo de revisão cega por pares (“Double blind peer review”) |
3 – Algumas instituições jornalísticas (NYT, Guardian, Washington Post, etc) | Alguns jornais, legado de uma era iluminada de devoção aos fatos, bem como o papel do “quarto estado” como verificação e equilíbrio |
5 – Wikipedia | Produção participativa consensual de conhecimento, com subeditores não especialistas |
6 – Outras instituições “jornalisticas” (Fox News) | Jornalismo sensacionalista com um viés óbvio destinado a energizar uma base |
7 – Facebook | Qualquer pessoa com uma idéia, pode postar quase tudo o que quiser. |
9 – Neo-NAZIs and Daesh / ISIS | Movimentos ideológicos com comunidades fortes que fazem grandes exceções à experiência científica (ex. “ciência” nazista da Segunda Guerra Mundial – o conhecimento científico não pode incluir o conhecimento Judaico) |
10 – The Crazies / Breveik / Jihadists / vendedores de conspiração (info wars) | Produção de idéias dissociadas de experiência, em grande parte projeções de pessoas emocionalmente perturbadas |
Por outro lado, a Relatividade se preocupa se o que é verdadeiro, é considerado plural ou singular, entre universalismo e pluralismo. Para o universalismo, a suposição central é que existe um conhecimento baseado em uma única verdade, independentemente da perspectiva e da cultura. Verdade não pode ser local, e o que é verdadeiro, é verdadeiro, independentemente de qualquer contexto. Gravidade por exemplo, é uma constante em qualquer parte do planeta e em qualquer outro planeta. Na filosofia da ciência, diferentes escolas de epistemologia levaram isso adiante: positivismo, pós-positivismo e realismo crítico por exemplo (Crotty, 1998). Exemplos de epistemologias universalistas também incluem a Igreja Católica, e outras religiões hebraicas, e embora desafiadas séculos atrás pela revolução científica, resistiram à possibilidade de uma verdade alternativa. Mais recentemente, o universalismo nas ciências sociais foi desafiado pelos movimentos pós-modernos e pós-estruturais (Denzin e Lincoln, 2003). O universalismo científico ocidental, como a antropologia e a sociologia da era colonial, foi criticado por fornecer as justificativas ideológicas para o colonialismo – a supremacia branca aplicada (Inayatullah, 1997). De fato, o universalismo liderado pelo Ocidente viu a narrativa de uma civilização, imposta ao resto do mundo para seus próprios fins. Teóricos pós-coloniais como Santos (2006), Escobar (2011), Shiva (2000) e muitos outros pediram pela descolonização do conhecimento. A hegemonia cognitiva do Ocidente em relação ao desenvolvimento destruiu dezenas de países e ecossistemas, por meio de ajustes estruturais neoliberais e pela aplicação de modelos econômicos de ganho/perda (Bello, 2007).
Desse ponto de vista, a predominância do universalismo ocidental pode ser vista como a destruição e subordinação dos conhecimentos do Sul Global, o que Santos descreve como “epistemicida” (Santos, 2014). Santos defende assim, uma “Epistemologia do Sul” e “Democracia do Conhecimento”, enquanto Escobar defende o pluriversalismo – que pode transcender o paradigma de desenvolvimento hegemônico do Ocidente. No diagrama a seguir, essa dimensão é explorada. (Observe que os números significam a posição em um espectro e, portanto, pulam).
Tabela 2: Análise espectral da relatividade. Fonte: Autor
1 – Um Deus, Meu Deus | Campos de Jesus, al-Qaeda, ISIS (fanatismo religioso judaico), ultra nacionalistas Hindus |
2 – Consenso de Washington – desenvolvimento neoliberal – fim da história | A crença de que existe um ponto final determinado para o desenvolvimento social humano e se parece com um shopping em Delaware |
3 – Universalismo Científico | A ciência é a base mais forte do real, e não devemos considerar a noção de outros conhecimentos legítimos |
5 – Construtivismo | “Verdade” ou o real é coproduzido por uma comunidade e comunidades de comunidades, incluindo seus contextos geográficos e assembléias |
6 – Pós-estruturalismo | O empírico e o epistemológico são múltiplos e co-constituintes |
8 – Pluriversalismo | Muitos sistemas de conhecimento, fundamentados em diversos contextos geográficos e vividos – democracia do conhecimento |
10 – Nova era da Califórnia, solipsismo hippie | Crença cria realidade, moda passageira da física quântica, o filme O Segredo |
Quatro Futuros da Realidade
Fig. 2: (Diagrama 2) Quatro futuros da realidade. Fonte: Autor
Essa análise, usando Ideação e Relatividade como duas incertezas críticas, dá origem a quatro combinações possíveis. No lado direito do diagrama, onde especialistas e testes rigorosos (científicos ou não) não têm poder, existem duas combinações: Pluralismo + Crença e Universalismo + Crença. No lado esquerdo, existem outras duas combinações: Universalismo + Ciência e Pluralismo + Ciência. Essas quatro combinações agora são usadas para explorar o presente e o futuro da realidade, como quatro cenários. Seguindo o método CLA, cada um é apresentado com uma metáfora.
Tabela 3: Análise em Camadas com quatro cenários para os futuros da realidade. Fonte: Autor
Cenário 1: Pluralismo + Crença | Cenário 2: Universalismo + Crença | Cenário 3: Universalismo + Ciência | Cenário 4: Pluralismo + Ciência | |
Ladainha/
Sintomas |
Cambridge Analytica Fisaco; Terra-Plana; Breivik; Christchurch; movimento anti-vacina | Sistema de Crédito Social da China; Rússia mata seus jornalistas dissidentes | Desmembramento do mito de Bill Maher / Richard Dawkins; movimento anti-anti-vacina; Cientismo COVID-19 | Complexidade, Sistemas, Pesquisa-ação, Comunidades integrais |
Causas Sistêmicas | Dados como commodity; Economia política neoliberal; Guerras Culturais | Grande firewall da China; Monopólio da mídia / Oligopólio (ex. Rússia) | Defesa da ciência climática; defesa da pandemia da ciência covid-19 / raiva / recuo | Globalização cultural; complexidade epistemológica; política cosmo-local |
Maneiras de Saber | Libertário; Capitalista | Etno-nacionalista; Neofascista | Empírico; Científico | Democracia Pluriversal / do Conhecimento |
Metáforas | O poço do gladiador | O campo de reeducação | O internato | O jardim de permacultura |
Cenário 1: Pluralismo + Crença
Fig. 3: (Metáfora) O Poço do Gladiador
Nesta combinação, todos mantêm suas próprias verdades especiais, mas não há diretrizes de para quem as idéias valem mais do que quaisquer outras; não há rigor na maneira como essas perspectivas e idéias são avaliadas; e pior, é o mais barulhento, mais rico e mais cruel que tem suas ideias expostas e aceitas Qualquer verdade é perdida para os espíritos animalescos de interesses especiais. As pessoas são afiliadas a grupos com crenças – e essa identidade e grupo impulsionam uma avaliação razoável. Quem grita mais alto e tem a maior câmara de eco vence, mas na realidade todos perdem, pois a esfera pública (uma realidade compartilhada) é totalmente prejudicada. Ironicamente, todo mundo pensa que está sendo “honesto” enquanto desacreditam os outros. Gritos, intimidação e manipulação são a maneira como as pessoas aprendem a vencer e a lidar nesse ambiente. Essa combinação sinaliza um colapso civilizacional, mas é indicativa da trajetória atual das nações na esfera anglo-americana (EUA, Reino Unido, Austrália), e outras nações onde plataformas de mídia sub-reguladas e super capitalizadas exacerbam fissuras sociais e ideológicas.
Sem um padrão para a verdade, e a mídia cada vez mais controlada por interesses especiais corporativos e financeiros desregulados, a vontade política global sobre as mudanças climáticas nunca se materializa. Os negadores do clima não apenas continuam a prejudicar a legitimidade da ação climática, sem normas sociais ou regulamentações funcionais das grandes tecnologias, mas eles também se tornam beligerantemente barulhentos em relação à questão do aquecimento global. Como conseqüência, as nações continuam brigando e discordando entre si e dentro de si mesmas sobre a realidade, e o mundo não desenvolve ações coordenadas com base em um consenso científico do problema. A civilização humana agora está atingindo um aquecimento de 3 graus Celsius em 2100, com avarias sistêmicas crescentes.
A polarização, com base nessa dinâmica da qual a comunidade grita mais alto, atinge um ponto crítico. Não basta desconstruir a verdade alheia – difamação e demonização, são as emoções e os comportamentos predominantes. Ações e conflitos baseados no ódio são amplificados, o massacre de Christchurch e eventos semelhantes foram apenas sinais de coisas muito piores por vir. Em alguns casos, temos guerra civil total. Como no poço dos gladiadores, os mais cruéis e habilidosos prosperam, mas qualquer coisa além das verdades da ladainha, morre a mil cortes.
Cenário 2: Universalismo + Crença
Fig. 4: (Metáfora) O campo de reeducação
Com o universalismo e a crença de não especialistas reunidos, somos levados de volta a um mundo arcaico que imediatamente rejeita a ciência, mas fornece uma noção unitária, se não artificial, da realidade. Este é o Macarthismo (McCarthyism) da década de 1950 nos EUA, onde uma ordem ideológica ou o “mundo livre” contra as forças da opressão, expulsou ou bloqueou quaisquer sistemas de conhecimento alternativos (ex. Socialismo). Ou como os Nazistas elaboraram a idéia da ciência nazista e rejeitaram a “ciência judaica”. Como conseqüência, a sociedade fica imbecilizada – assim como nos EUA a hegemonia de defender o “capitalismo do mundo livre” deu lugar ao neoliberalismo, sem a reintegração do socialismo. Isso pode ser visto na China hoje, enquanto o governo Chinês tenta cultivar a harmonia dentro de seu grande firewall, detendo e eliminando vozes dissidentes, enviando grupos minoritários para seus campos de reeducação e aplicando um sistema de crédito social que controla o que as pessoas pensam e fazem. Isso satisfaz a necessidade de certeza em um mundo pós-normal e também pode fornecer uma identidade artificial para satisfazer a necessidade de pertencer. Como um campo de reeducação, as pessoas são doutrinadas ou propagadas em crenças particulares, mas que criam a ilusão de dentro, de serem verdades essenciais. E, como vemos na pandemia de Covid-19, esse cenário é xenófobo, pois alguns estados tentam gerar uma narrativa de culpa projetada em outras nações com base em conspirações e fabricação.
Assim, neste cenário, o mundo pós-normal é um terror existencial exagerado para a pessoa comum, que renuncia à suas próprias faculdades críticas e livres, pela promessa de segurança em grupo e um senso de certeza e previsibilidade. Os futuros líderes neofascistas (ou aqueles com essas tendências), como os de hoje, Trump, Bolsonaro, Orban e Modi, sabem como usar isso e cultivam o medo e o preconceito que levam as pessoas a seus braços. À medida que seu poder cresce, eles são capazes de começar a mirar e eliminar as vozes de oposição, substituindo-as por sua versão da realidade que eles esperam que a nação em geral aceite. Uma realidade compartilhada e uma esfera pública artificial são recriadas, mas a um custo altíssimo.
A ironia é que, à medida que cada nação e líder neofascista cultiva seu próprio tipo particular de universalismo, surge um novo tipo de relativismo, uma vez que cada nação habita seu mundo auto-referencial mais plenamente, e se desconecta do mundo “falso” de outras nações. No nível da ladainha, isso tem o efeito de criar incomensurabilidade cultural entre os povos de diferentes nações. O rabo abana o cachorro, pois a falsa distinção entre mundos nacionais criados por líderes neofascistas gera beligerância e preconceito, que por sua vez, leva os países à guerra. Fantasia sombria gera realidade sombria. Os inteligentes entre eles, sabem que não é necessariamente do interesse deles ir para a guerra, mas existem os doutrinados e os fanáticos, e os espíritos animalescos do povo foram libertados.
Cenário 3: Universalismo + Ciência
Fig. 5: (Metáfora) O Internato
A ciência universalista definiu os séculos XIX e XX, com descobertas em física, biomedicina, biologia e outras disciplinas que revolucionaram nossa imagem do mundo. Desde a teoria da evolução que estabeleceu os seres humanos como uma espécie em vez de raças, a descobertas em física quântica (subatômica) e astronômica (matéria escura, energia escura, antimatéria), a ciência é realmente o gorila de 800 libras do mundo de fazer verdades. Embora a própria ciência não proponha nenhuma “verdade” imutável, mas ao invés disso todas as idéias são apresentadas como hipóteses sujeitas à avaliação e verificação; o que importa é onde as pessoas depositam sua confiança, a instituição da ciência. Nesse cenário, o conhecimento participativo, com o qual nos acostumamos com a Internet, é um movimento histórico momentâneo ou balanço do pêndulo. As pessoas precisam confiar em alguma coisa, e a ciência é a grande narrativa que pode sobreviver ao ataque de notícias falsas, e as bases selvagens geradoras de teorias da conspiração. Nesta narrativa, a ciência descobre a verdade, que é singular – algo em que todos podemos acreditar. É fundamentalmente hierárquico, pois o conhecimento institucional vale mais que o conhecimento das pessoas. É lento, pois as idéias antigas apenas mudam, com uma revolução gradual (Kuhn, 2012). Mas é o que as pessoas precisam psicologicamente. Assim como o antigo internato, a instituição é primária, há conformidade, regras e compromisso com o processo.
Há uma reação maciça contra a descontração provocada pela Internet (desinformação), um absurdo Trumpiano durante a pandemia de coronavírus (Covid-19) e a negação do aquecimento global que minou a ação climática por décadas. Com o tempo, a Internet com seus milhões e bilhões de teóricos de poltrona, divulgando quaisquer absurdos e opiniões que vem à mente, simplesmente desacredita a si mesma. A Internet se torna sinônimo de uma versão degradada e fragmentada da realidade, e apenas as instituições que continuaram a aderir a um padrão científico, permanem dignas de crédito. Por exemplo, à medida que a crise climática se aprofunda, com eventos catastróficos crescentes, aumento do nível do mar, derretimento em massa, incêndios, secas, furacões, e condições climáticas alteradas, a tolerância das pessoas por conspirações científicas contra o clima e fatos alternativos murcham. Assim, negadores se tornam párias – às margens da sociedade e excluídos do convívio social, não apenas considerados irresponsáveis, mas moralmente repreensíveis e criminalmente responsáveis por espalhar falso conhecimento. Uma aceitação global pela ciência ajuda a enfrentar esses desafios. Surgem novas plataformas que fornecem alguma dinâmica de conhecimento ponto a ponto, mas que são moderadas de perto, e qualquer discurso não científico é punido.
A esfera pública é devolvida sob o disfarce do discurso científico. No entanto, há um achatamento da visão humana da realidade. Como argumentaram Berman (1981), Thompson (1974), Santos (2006), Wilber (1998) e outros, a ciência achatou a realidade no que é material ou físico e relegou outros discursos importantes: psicologia, espiritualidade, cultura e até ciências sociais, para domínios de verdade secundários, com menos importância. O restabelecimento da velha ciência tem um preço. A exclusão dos programas de atenção plena (Mindfulness) e meditação nos ensinos fundamental e médio, é menosprezada por administradores “baseados em evidências”. Os estudos culturais são vistos como uma educação sem substância, sem fundamentos comprováveis. O mundo caiu em um beco sem saída e voltou ao ponto original onde começou a se perder.
Cenario 4: Pluralismo + Ciência
Fig. 6: (Metáfora) Jardim da Permacultura
A conjunção do pluralismo e da ciência significa que há uma variedade de sistemas de conhecimento que possuem processos únicos para manter o rigor. A ciência continua sendo importante, mas a noção de uma ciência única se esvai, e a ciência é entendida então no plural – ciências. Embora esse tenha sido o caso de grande parte das ciências sociais, esse padrão se aprofunda consideravelmente. A meditação como ciência se torna proeminente. Meta-disciplinas, como estudos de futuros, sistemas, filosofia e epistemologia, tornam-se mais importantes e proeminentes à medida que as pessoas lidam com geração de sentido inerente à complexidade epistemológica, e desembaraçam os difíceis desafios sistêmicos que enfrentamos. Nesta era das “meta-ciências”, o conhecimento é visto como um ecossistema de muitos sistemas de conhecimento interligados, cada um com sua relevância contextual. Pesquisa e Ação se tornam mais importantes, uma vez que a aplicação do conhecimento na prática, se torna a base para a relevância contextual. Como no jardim de permacultura, entende-se que algumas plantas são boas em certas condições, tipos de solo, e que um jardim precisa ser plantado com uma variedade de espécies complementares que ajudam a regenerá-las. Da mesma forma, o ecossistema do conhecimento é projetado para ser regenerativo – com base em quais sistemas de conhecimento são complementares e adequados ao contexto, às pessoas e à geografia, ao que Escobar descreve como um “pluriverso”. Todas as ciências são vistas como fundamentalmente inter e transdisciplinares, com uma série conexões na rede do conhecimento.
Neste futuro, muitos dos conhecimentos reprimidos ou renegados são recuperados. Como argumenta Santos, o domínio da ciência Ocidental teve o efeito de tornar invisíveis muitos dos sistemas de conhecimento nos quais as pessoas se apoiavam (métodos agrícolas locais, medicina indígena, conhecimento espiritual/xamânico local, conhecimentos das mulheres, técnicas de construção local etc.). Ao estudo dessa invisibilidade fabricada, ele chamou de “sociologia das ausências”, como os conhecimentos locais ou contextuais (não universais) eram e ainda são feitos para serem invisíveis, irrelevantes ou retrógrados (como pertencentes ao passado e não ao futuro). Como solução, ele discutiu a necessidade de recuperar e re-validar uma “epistemologia do sul global” e um processo de “democracia do conhecimento”.
Como escrevem Bud Hall e Rajesh Tandon:
Democracia do conhecimento refere-se a uma inter-relação de fenômenos. Primeiro, reconhece a importância da existência de múltiplas epistemologias ou formas de conhecimento, como sistemas orgânicos, espirituais e terrestres, estruturas decorrentes de nossos movimentos sociais e o conhecimento dos marginalizados ou excluídos em qualquer lugar, ou o que às vezes é referido como conhecimento subalterno. Em segundo lugar, afirma que o conhecimento é criado e representado de várias formas, incluindo texto, imagem, números, história, música, drama, poesia, cerimônia, meditação e muito mais. Terceiro, e fundamental para o nosso pensamento sobre democracia do conhecimento, é entender que o conhecimento é uma ferramenta poderosa para tomar ação e aprofundar a democracia, e lutar por um mundo mais justo e saudável. Democracia do conhecimento envolve vincular intencionalmente valores da democracia, e ação ao processo de uso do conhecimento.13
Ou, como William Irwin Thompson poderia argumentar, este é um futuro ideologicamente impuro (Thompson, 1985, p. 51). Neste futuro portanto, as comunidades de conhecimento se esforçam para abrir espaço para que os sistemas de conhecimento plurais sejam conhecidos, interconectados e construam ecossistemas de relacionamentos generativos. Mas existem muitas contradições e tensões. A incerteza prevalece. Mas nem todos os conhecimentos são aceitos. Alguns podem ser considerados ervas daninhas. Comunidades baseadas no ódio, como aquelas que pedem jihad violenta, supremacia branca, teorias da conspiração, posturas machistas ou culturalmente chauvinistas que posicionam um gênero ou cultura como superior ao outro, também são vistas como ervas daninhas. Entende-se que a Internet cria um ambiente acelerado para que essas ervas daninhas germinem, cresçam e se espalhem, de modo que as estratégias adotadas para lidar com esse novo ambiente são acelerar o plantio companheiro de epistemologias co-geradoras que podem afastar as ervas invasoras, tornando-as mais difíceis de se estabelecer. As pessoas fazem capina regularmente. Além disso, as meta-ciências que emergem desempenham um papel semelhante a um projetista de permacultura, criando intencionalmente condições para o crescimento de um ecossistema preferido. Usamos a ciência, mas recorremos a diferentes civilizações para fazer perguntas diferentes, e não para desafiar a natureza da gravidade.
Conclusão
Este artigo é uma tentativa de entender esse domínio escorregadio e complexo da construção da realidade em evolução, em particular como a Internet em combinação com a dinâmica estrutural (economia política), influencia isso. Os cenários são obviamente redutivos em sua expressão, fornecendo tipos ideais que ao mesmo tempo achatam o problema, mas também, podem nos ajudar a pensar com novas dimensões e distinções. Os mapas não são o território, e ambos revelam e ocultam. Para concluir, gostaria de deixar ao leitor algumas idéias importantes.
Um senso comum de realidade que nos permite resolver juntos nossos maiores problemas (mudanças climáticas, pandemias etc.) é fundamental para nossa sobrevivência e bem-estar, é um recurso comum. A ciência pode ajudar se criar a base para isso, e se forem utilizados seus potenciais contra-hegemônicos. Infelizmente, nos séculos 19 e 20, foi usado para justificar a exploração. Esperamos que, no século XXI, possa ser uma força de transformação. Mas, mesmo com a ciência, ainda precisaremos de muitos conhecimentos para criar o futuro que desejamos. Como nos engajaremos com essa pluralidade e com essa ecologia de conhecimentos, será fundamental para o nosso mundo. Será que as religiões desempenharão um papel de vozes e visões da humanidade e humildade? Ou eles serão anticientíficos e persuasivos (meu Deus é melhor que o seu Deus)? Será que a contra-cultura/movimento da nova era promoverá maior uso de meditação e estilos de vida saudáveis? Ou ele se transformará em conspirações e cristais antivacina? Como criaremos essa ecologia de conhecimentos será fundamental. As ecologias podem ser predatórias e degradativas, ou simbióticas e generativas. Talvez a maior questão seja se podemos escapar do vórtice da economia política neoliberal global, onde a construção da realidade se baseia nos incentivos perversos dos lucros de curto prazo, e na preservação política de oligarcas e príncipes. Nosso mundo e nosso futuro estão exigindo uma transformação.
Reconhecimentos
O autor gostaria de agradecer aos árbitros por seus comentários e sugestões úteis, e ao co-editor Michael Nycyk por seu apoio em vários níveis.
Notas
- https://www.denverpost.com/2018/11/15/denver-flat-earth-conference/
- https://en.wikipedia.org/wiki/Christchurch_mosque_shootings
- https://www.ilfoglio.it/userUpload/The_Great_Replacementconvertito.pdf
- https://www.counterextremism.com/press/youtube%E2%80%99s-algorithms-are-radicalizing- youth-faster-ever
- https://worldnewsdailyreport.com/woman-sues-samsung-for-1-8m-after-cell-phone-gets-stuck- inside-her-vagina/comment-page-1/
- https://www.theguardian.com/news/series/cambridge-analytica-files
- https://www.theguardian.com/australia-news/2019/dec/06/inside-the-hate-factory-how-facebook- fuels-far-right-profit
- https://futurism.com/the-byte/lawsuit-fortnite-addictive-cocaine
- See: https://www.theguardian.com/australia-news/2019/dec/06/inside-the-hate-factory-how- facebook-fuels-far-right-profit
- https://www.axios.com/worlds-richest-and-poorest-countries-growth-trends-570972f9-4ded-4405- b16f-f8f7620d77f7.html
- https://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-billionaires-low-tax-rate-working-class-cost-a9148746.html
- See: https://www.theguardian.com/technology/2020/feb/21/climate-tweets-twitter-bots-analysis
- Budd Hall and Rajesh Tandon (Retrieved Aug. 8, 2016, from http://www.politicsofevidence.ca/349/)
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